António Bica
Cada noite a manhã - A história de Hassã Badredine (continuação)
Antes da madrugada a chamada no minarete à oração acordou Xariar. Xerazade continuou:
O corcunda, manteve-se calado. O vizir, furioso, gritou-lhe: «Se não responderes, mando-te para o inferno». O corcunda de dentro da latrina implorou: « Por Deus, ó leão, não me mates, que te obedeci, ficando aqui toda a noite.» O vizir, sem perceber a que se referia o corcunda, disse: « Que dizes, maldito. Sou o vizir, pai da noiva.» O corcunda suspirou de alívio: «Foge antes que chegue o génio terrível em forma de leão. Não posso deixar este buraco mal cheiroso antes que ele me autorize.» Contou-lhe tudo o que lhe acontecera, quando se preparava para o contrato do casamento, com a chegada de um jovem estrangeiro, a dor de barriga que tivera e o terror do leão que ali o pusera e proibira de sair.
O vizir Chansedine, entre divertido e zangado, pegou-lhe pelo cu das calças e tirou-o do buraco. Mal se viu livre, o corcunda fugiu a sete pés com a cara besuntada do que havia na latrina e a feder pior que um burro morto há sete dias.
O vizir voltou ao quarto da Gazela no Deserto e perguntou o que se passara. A filha esclareceu-o sobre o que acontecera na véspera, como casara com o jovem estrangeiro e o corcunda desaparecera. Como duvidasse, Gazela no Deserto mostrou-lhe a roupa do homem com quem casara e passara a noite. Chansedine examinou-a e viu que era semelhante à dos vizires. Encontrou as moedas que o judeu pagara a Hassã Badredine e a cópia do recibo de quitação donde constava que o pagamento fora feito a Hassã Badredine, filho do falecido vizir de Bássera, Nuredine. Ao lêr o papel Chansedine abriu de espanto a boca e comentou: « Só Deus é poderoso.» Disse à filha: « Sabes com quem casaste? Com Hassã Badredine o filho do meu irmão Nuredine, a quem, nos nossos corações, estavas destinada.» Como disse o poeta:
« Afadiga-se o homem a pôr e a dispor / sem se lembrar que pouco manda. / Como rio a vida corre / do nascimento para a morte. / Nademos, conscientes, na corrente, / vendo nascer e pôr-se o sol, / aprendendo, sempre aprendendo, / sem magoar quem connosco vai / certos que, tarde ou cedo, chega o fim.»
Depois encontrou o escrito que Nuredine entregara ao filho cosido na roupa e por ele confirmou o que constava da cópia do recibo com todos os pormenores da linhagem de Hassã Badredine e da vida de Nuredine.
Chansedine foi à presença do sultão com a filha e as roupas de Hassã Badredine e contou-lhe quanto acontecera. Maravilhou-se o sultão e mandou registá-lo nos arquivos do palácio para memória de todos.
Gazela no Deserto esperou dias e dias que Hassã Badredine regressasse, mas em vão. Ninguém sabia o que lhe sucedera. Entretanto o casamento frutificara e a barriga de Gazela no Deserto foi crescendo.
O dia assomara à janela. Xariar tinha que ir para o conselho e Xerazade interrompeu a narração.
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