O cavaquinho português transformado no instrumento musical nacional do Havai
Edição 725 (12/10/2017)
O cavaquinho português transformado no instrumento musical nacional do Havai
Nunca estive no Havai. Mas li o soberbo romance histórico de James A. Michener. E, como todos os que sonham acordados, sempre, na minha juventude, esperava desembarcar um dia nas suas praias e ser recebido com a alegria esfusiante dos seus habitantes, como aconteceu com James Cook, em 1778, quando pela primeira vez os havaianos viram um europeu e o receberam com as suas danças coleantes e o distinguiram com a imposição de um bonito colar de flores, à volta do pescoço, como sinal de boas vindas. Mais tarde, numa das minhas variadas idas aos Açores, tive a oportunidade de conhecer uma estranha personagem, mulher lindíssima com as características estampadas no rosto dos habitantes da Polinésia, feições correctíssimas, escultural, com uma cintura de vespa, mas com umas ancas tão largas, que parecia mesmo estar submetida a um tipo de alimentação especial para conseguir aquelas exageradas “cadeiras”, como dizem os castelhanos. Uma caricatura de “fausse maigre”, quanto a mim com alguma justificação de casta ou de qualquer razão não natural ou, pelo menos, a imposição de costumes locais relativos a forma de ver a beleza física que deve ostentar determinada categoria social.
Parti de Lisboa rumo à Terceira e de lá para a Ilha das Flores, talvez a mais bonita do belíssimo Arquipélago Açoriano. Foi nas Lajes que, pela primeira vez, descobri tal passageira e companheira de voo. Apesar de estar acompanhada, pelo menos por duas outras senhoras, atendendo à demora havida na retoma do voo, tive a oportunidade de entabular uma pequena conversa com tão singular figura. Perguntei em inglês qual a sua proveniência e naturalidade. Respondeu em bom português, com ligeiro sotaque. Era havaiana, um elemento da Família Real do Havai e filha de um açoriano da Ilha das Flores e de uma princesa do Havai. Ainda trocámos algumas considerações sobre os portugueses e o Havai, a nossa influência musical através do cavaquinho e pouco mais tive a oportunidade de descobrir, pois logo embarcámos e, embora sentados em lugares próximos, não houve o ensejo de continuar a minha conversa inquisitória, como tanto queria. À sua espera, muita gente que logo a rodeou com grandes manifestações de carinho e respeito. Bem esquadrinhei, nos dias seguintes, a Ilha das Flores de ponta a ponta, na esperança de um casual encontro, mas nada! Evaporou-se a minha princesa havaiana, com sangue açoriano e tudo…!
No fundo, a real figura tinha dito o essencial, para me fazer interessar pela sua terra. Claro que logo fui fazer investigação pormenorizada à história de uma princesa havaiana encontrada ocasionalmente numa encruzilhada da vida. Pois bem, aí vai o que concluí:- Atendendo á governação injusta havidas em algumas ilhas do Arquipélago do Havai, com decisões políticas misturadas com expressões de religiões nem sempre respeitadoras da espécie humana, e dos direitos, liberdades e garantias de cada um, Kamehcmeha I centralizou o governo de todo o arquipélago na sua pessoa, assumindo-se como representante de toda a população, que lhe passou a dar o tratamento conforme à Instituição real estabelecida, onde a liberdade de cada um passou a ser moeda corrente. A maneira de viver estava intimamente ligada à dança, à música e ao respeito pela natureza, situação que foi fortemente reforçada pela Instituição Real. Todavia, a chegada de um grupo fundamentalista de missionários protestantes americanos mudou o panorama, sendo violentamente perseguida a pequena comunidade católica já existente, bem como os europeus que professavam essa religião, começando ao mesmo tempo as proibições aos costumes ancestrais havaianos, como as manifestações de dança que faziam parte da sua religião, da sua cultura e da sua razão de ser. Valeu, na altura, a intervenção de uma fragata francesa que bloqueou o Porto de Honolulu, libertando os católicos e todos os que estavam a ser presos por serem apanhados a dançar…! Essa proibição, na verdade, acabou por ser suspensa, pois a população começou a deixar-se morrer, por não poder dançar, não lhes sendo permitido cumprir um preceito religioso a que estavam obrigados. A liberdade religiosa foi restabelecida, bem como as suas diferentes formas de se manifestar. Em 1839, Kamehameha III criou uma Constituição, consagrando os três poderes políticos, executivo, judicial e legislativo, independentes entre si, e desse modo conseguiu que a América reconhecesse o Havai como um País Independente. Mas os abusos das empresas americanas e a exploração dos naturais do Havai continuava, apesar dos seus protestos. Quando a Rainha Kala´Kaua subiu ao poder, imediatamente começou a proteger o povo havaiano e os seus costumes, contra a prepotência dos americanos e do sector protestante, acabando com qualquer limitação à liberdade religiosa e criando restrições às actividades abusivas de algumas empresas. Não contentes com esta atitude revolucionária de uma Chefia de Estado legítima, apoiada por todo o Povo sem excepção, os americanos, pretextando o medo de uma invasão japonesa, em 1893, resolveram invadir militarmente o Arquipélago, matando miseravelmente os elementos do simbólico exército real, armado com velhas e imprestáveis espingardas e atirando sobre o povo desarmado que logo tinha acorrido a defender a sua Rainha. Uma vergonha clamorosa…A Rainha foi deposta, embora actualmente a representante da Casa Real ainda mantenha o respeito de toda a população havaiana. Todavia, o Havai foi considerado à força e contra a vontade inteira do seu povo, note-se bem, mais um estado americano.
Independentemente desta atitude ignóbil americana em relação a um Povo Pacífico e ainda por cima simpatiquíssimo e amistoso, fui percebendo, nas entrelinhas da sua história, a grande influência que os portugueses tiveram e têm naquele Arquipélago.
Na verdade, em 1879, devido à cultura da cana de açúcar, foi necessária mão de obra especializada. Então, cerca de meio milhar de portugueses da Madeira, partiu para o Havai. A bordo viajava também o músico madeirense Manuel Nunes, fabricante de machetes, os cavaquinhos da Madeira, e seu exímio tocador. O Rei do Havai, David Kalakava, também Ele músico e compositor, foi assistir ao desembarque dos portugueses, em 23 de Abril de 1879, data ainda hoje celebrada no Havai. Recebeu como presente da comunidade portuguesa que chegava, um cavaquinho que aprendeu a tocar e que hoje em dia está exposto no Museu de Honolulu. Foi baptizado pelos havaianos como UKELELE, o que quer dizer na sua língua “Pulga Saltitante”, sendo definitivamente ligado à cultura musical havaiana, e considerado um símbolo nacional do Havai.
É útil acrescentar que este cavaquinho é semelhante ao cavaquinho de Braga e é um instrumento só com quatro cordas e uma afinação parecida com a do “Banjo”.
Os pensamentos e as descobertas que fiz acerca do Havai, motivado pelo conhecimento fugaz de uma bonita princesa de uma família destronada pela imbecilidade americana, fizeram-me estudar a fundo a sociedade havaiana e a sua evolução sócio económica. Contudo, por agora, nada mais tenho a acrescentar ao CAVAQUINHO português, agora instrumento nacional do Havai.
António Moniz Palme – 2017
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Edição 724 (28/09/2017)
ABADE DE PRISCOS
Troca de Abades ou a exigência portuguesa de um bom pitéu em todas as situações
Um meu conhecido, após me ter ouvido fazer uma pequena intervenção a propósito do pensamento do Abade de Baçal, no último Encontro da História e da Cultura Judaica, na Torre de Moncorvo, confidenciou-me que tinha apreciado bem o que eu tinha dito, e que só me faltou falar nas conhecidas habilidades gastronómicas do clérigo em questão. E o que é certo, é que fui apanhado de surpresa com este reparo. Ultrapassado o mal estar por me ter deixado prender ingenuamente nas malhas da minha santa ignorância, passei minuciosa revista às minhas memórias e conhecimentos sobre o historiador e investigador transmontano. E o grande drama é que nada encontrei que pudesse justificar a minha hipotética omissão e a acusação feita pelo meu interlocutor. Claro que é muito natural que o Abade de Baçal acompanhasse Miguel Torga e outros amigos na boa mesa, nas caçadas e nas posteriores almoçaradas, mas nunca na minha vida ouvi dizer que fosse um cozinheiro acima do trivial ou mesmo alguém que gostasse de preparar a própria refeição.!. Havia no referido reparo um grande mistério ou, em alternativa, uma grande confusão sobre ABADES e Culinária à mistura, pensei eu após ter meditado uma boa estação semanal. Os meus silêncios e as paragens para meditação, geralmente são bons conselheiros e ajudam-me neste tipo de imbróglios. O Abade de Baçal viveu de 1865 a 1947. Com que outra personalidade poderia haver uma confusão fácil? Pensei eu…! E, na verdade, a solução desta charada caiu do Céu aos trambolhões. Num instante se fez luz no meu Espírito. A confusão só poderá ter sido com o célebre Abade de Priscos?
Na realidade este Abade foi um Cozinheiro notável, que deve ter nascido por volta de 1834 e faleceu, com 95 anos, em 1930. São, por conseguinte, os dois Abades de Baçal e de Priscos contemporâneos. Porém, não tenho notícia de que alguma vez se tenham cruzado nas suas acividades paroquiais ou sequer tenham sabido da recíproca existência…! Não posso deixar de esclarecer que o Abade de Priscos, era uma figura respeitável da Igreja da altura, com uma obra pastoral meritória e que, apesar disso, semeou o mundo da mitologia gastronómica de então com uma série de histórias, algumas lendas bem escanhoadas, como diria o meu barbeiro, ou com peripécias, que foram sendo acrescentadas ao longo dos tempos pela vontade e volúpia de cada um. Ora esta figura minhota nada tem a ver com o nosso transmontano Abade de Baçal, arqueólogo, historiador e escritor austero…
Bem, não há dúvida que, nestas circunstâncias, tenho o dever de habilitar os meus leitores com alguns dados sobre o Abade de Priscos, bem conhecido por ser autor de umas das melhores sobremesas portuguesas, célebre em todo o Mundo, o Pudim Abade de Priscos, feito com quinze gemas de ovo, vinho do Porto e uma calda de açúcar com quinze gramas de TOUCINHO de porco, com Sua Licença, numa forma forrada com caramelo, segundo ensina o especialista Fortunato da Câmara, no seu livro sobre autores de receitas célebres, denominado “Abade de Priscos” . Como vêm esta receita, apesar das Bênçãos do seu autor, não deve ser nada boa para a saúde, isto é, deve ser um pecado de lesa majestade para o descarado colesterol de cada um. Mas nem sempre o que é bom, faz bem à Saúde e à Alma…, lá diz o ditado!
Devo esclarecer que o nosso Abade de Priscos era um homem muito alto e magríssimo, com um nariz adunco enorme, que lhe devia dar uma capacidade olfactiva fora do vulgar. Chamava-se Manuel Joaquim Machado Rebelo, nascido na Freguesia minhota de Turiz, em Vila Verde, tendo sido ordenado Padre em 1861, acabando por se fixar em Priscos, após ter estado a exercer funções pastorais em algumas outras localidades. Além de outros talentos artísticos, encenando e ensaiando peças de teatro para os seus paroquianos, responsabilizava-se pela confecção das refeições em dias de festa da Igreja. Com a divulgação dessas habilidades culinárias, começaram a pedir-Lhe para orientar os ágapes festivos de outras cerimónias religiosas vizinhas ou os banquetes de casamentos e baptizados, em casa de Amigos. Consta, segundo narra o gastrónomo e jornalista José Quitério, que certo dia preparou um jantar em honra do Rei, Sr. D. Luís, que no fim do banquete, completamente encantado com a qualidade dos pratos portugueses servidos, quis homenagear publicamente o bom do Abade Cozinheiro, instando-o a explicar como fez determinada iguaria. Perante o pasmo real e de todos os presentes, o bom Abade explicou que o sabor diferente era dado pela PALHA. O Rei rindo imediatamente lhe perguntou “Então dá palha ao seu Rei?” e o humilde Abade prontamente respondeu ”Real Senhor, todos comem Palha, a questão é saber prepará-la e pôr-lha diante”. Tal atrevimento gerou uma corrente de má língua no meio dos sacerdotes seus amigos e conhecidos, que aproveitaram a ocasião para o minimizar. O Abade de Priscos resolveu então dar-lhes uma boa lição. Tendo sido convidado, na última década do Séc. XIX, para a preparação de uma refeição comemorativa do final do Período Quaresmal, arregimentou dois dos seus amigos mais possantes para moerem alguns fardos de palha em almofarizes de bronze, transformando a mesma numa finíssima farinha. Essa rapadura entrou na preparação de vários recheios e na preparação de almôndegas feitas com diferentes carnes de caça. No fim, com o maior desplante perguntou aos comensais se tinham gostado da “palhada” que haviam comido, explicando que, como ingrediente da refeição, tinham tragado uns alentados fardos de palha. Um dos comensais, com caridade pouco própria de um clérigo, no meio de ameaças inusitadas, levantou a hipótese de vomitar em público o almoço. Enfim, o bom senso acabou por ganhar forma e todos fizeram uma feliz digestão, pois o repasto tinha sido excelente, com sabores não conhecidos, com um gosto diferente dado pela palha, mas de paladar, sem dúvida alguma, de santos manjares!!!.
Devo dizer que o Abade de Priscos se recusou a fazer um livro com as suas receitas, para fins de caridade. Pois, segundo a sua opinião, havia um pequeno senão nas suas receitas escritas. Não eram acompanhadas pelos dedos das suas mãos e pelo seu paladar, condições necessárias para o êxito das mesmas. E tinha toda a razão. Espero que este artigo tenha produzido nos leitores a diáfana subtileza de uma aragem doce de Setembro, nas margens do nosso Rio Vouga, pois bem andamos todos a precisar.
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