TIOS, TIOZINHOS & COMP. Ldª
Desde pequeno que na minha Região de Lafões e em toda a Beira, aliás em toda a Província, ouvia e tratava as pessoas de mais idade, que me não eram absolutamente nada, por TIOS. Era um sinal claro de respeito, de reverência por quem era mais velho do que a minha pessoa e cuja experiência, dada pela sua longa estadia cá na Terra, eu pretendia venerar. E as pessoas mais velhas, os referidos tios, gostavam deveras desse tratamento que recebiam, muitas vezes, de pessoas bem conceituadas. Claro está que esta espécie de falsos parentes em segundo grau da linha colateral, entravam naturalmente na senilidade própria de uma avançada idade, mas por tal não perdiam o título que passava a representar não já a admiração, mas sim a ternura que lhes era dedicada.
Nos grandes centro urbanos já não se passa o mesmo. Os tiques fixados pelos órgãos de comunicação social e pela escravizadora moda obrigaram a ser de bom-tom que os mais novos tratem, por sistema, os mais velhos, por tios. Tal não é para engrandecer o suposto tio, mas sim para simplificar o relacionamento com pessoas que nada são aos mais novos, mas que estes consideram importantes Quando desembarco em Lisboa, passo a ser tio dos filhos dos meus amigos, o que me elogia bem, mas igualmente de quanto menineco que existe na Capital. E esta ein?!!! Mais, antigamente até ficava irritado, pois encontrava uma rapariga bonita que nunca tinha visto e mal metia conversa, era logo tratado por tio, o que me colocava imediatamente, contra a minha vontade, num escalão etário mais alto, facto que criava um invisível muro nos contactos e nas possíveis e virtuais intenções. Mas, enfim, não deixava de ser bem-feito. Hoje em dia, como chefe de família e homem assente na minha vetusta idade, tal drama já não me faz cócegas.
Porém, havia outro tipo de tios, os pobres coitados que eram vítimas da má educação e importância dos luxuosos citadinos das margens do Tejo e similares, que resolviam com um ar superior demonstrar o seu estatuto superior, troçando ou minimizando o suposto parente. E lá vinha o “tiozinho” com uma intenção vexatória, muito diferente do modo como na província são tratados os tios postiços…!
Já passaram muitos anos e durante séculos exerci com gosto a advocacia. Dava-me invariavelmente muito bem com os magistrados dos tribunais que frequentava e de quem fiquei amigo sincero. Porém, de um momento para o outro apareceram no mundo da magistratura as senhoras juízes, actualmente juízas, trazendo para o calmo, cerimonioso, civilizado e tranquilo mundo jurídico, alguns defeitos que caracterizam o sexo oposto e que todos bem conhecemos, mas não temos paciência para suportar nos tribunais. Enfim, o cenário foi alterado significativamente. E as situações de tratamentos menos corteses, por parte de algumas senhoras juízas, mais inexperientes e, por que não, menos educadas, começou a florescer um pouco pelos canteiros dos julgamentos E se uma impertinência com um advogado não era bonito nem sensato, mas com testemunhas ou alguma das partes era simplesmente deplorável.
Os advogados mais antigos, baseados na sua experiência, iam suportando alguma frescura manifestada pelas senhoras juízas menos bem preparadas no aspecto educacional, com esperança que o contacto com os magistrados mais velhos as fizessem entrar nas baias de uma profissão em que a urbanidade é uma questão chave para a resolução dos conflitos. Os advogados mais novos, com medo de alguma vindicta, queixavam-se aos colegas de bancada ou de escritório, mas os protestos não passavam daí. Contudo, começaram a surgir situações verdadeiramente impensáveis e lamentáveis, nas salas dos tribunais, em que o respeito é um elemento fundamental para o bom exercício da justiça.
Estava num tribunal do Porto, num julgamento colectivo, do qual até fazia parte um juiz meu conhecido. A certa altura, entra em cena uma testemunha arrancada do interior minhoto, talvez saída das saborosas páginas camilianas, com um chapéu à maneira a cobrir uma idade muito avançada. Foi largada pelo oficial de diligências no meio da sala, enquanto os senhores juízes discutiam qualquer problema processual com um outro funcionário. Entretanto, a nossa testemunha virava-se para todos os lados, como os ponteiros sem destino de um relógio tonto. Durante a conversa dos magistrados, chegou a estar de costas para os mesmos à procura do rumo certo. Eu fazia-lhe discretamente sinal para se virar para o colectivo, contudo o senhor achava mais seguro estar de lado virado para a bancada dos advogados, onde me encontrava… Fiquei com a certeza que além de ser completamente mouco, devia ver muito mal. Por outro lado, era certamente a primeira vez que tinha entrado num tribunal e além do medo que alguém nessa situação sente, os minutos de espera em pleno centro da sala de sessões, após deixado ao abandono na incómoda ignorância e inexperiência, fizeram-no perder completamente o norte.
Quando finalmente recomeçou o julgamento e a Srª Presidente lhe começou a fazer perguntas, o nosso homem estava completamente perdido. Não sabia para que lado se havia de virar, não entendendo patavina do que lhe era dito. E então a Sra Presidente do Colectivo saiu-se com esta preciosidade jurídica “ ò Tiozinho ou se porta convenientemente ou mando-o para o local de onde veio”- O Velho desesperado, bem amarfanhava o chapéu entre as mãos nervosas, olhando suplicantemente para mim. Interrompi então aquele diálogo de surdos e disse à magistrada, para pedir à testemunha, para se aproximar da sua pessoa para ver se a mesma conseguia ouvir e perceber o que lhe diziam. Mal humorada com este reparo, atreveu-se a declarar que os magistrados não têm que andar com as testemunhas ao colo. Aí não aguentei mais e resolvi meter a magistrada na ordem. Depois de perguntar à Testemunha se já ouvia a voz da Senhora Juíza, fiz um ar inocente e perguntei à Magistrada se era da família da testemunha, nomeadamente se era sua sobrinha!!!?.Apanhada nas curvas, balbuciou a medo que não. Perguntei novamente se era prima ou parente da mesma ou amiga íntima. A Magistrada, dando sinais de estar cada vez mais receosa, repetiu novamente que não. Então com o ar mais pomposo que consegui engendrar, comuniquei à Srª Presidente do Colectivo que não admitia intimidades idênticas às utilizadas com uma testemunha, que não era sua amiga, conhecida, prima ou sequer sua sobrinha, para a estar a apelidar de tiozinho. Na sala de Audiências caiu um silêncio sepulcral. Ficou tudo amarelo. Eu era de topete, assim deduzi que pensassem os presentes tal os seus semblantes, bem como do lógico raciocínio dos magistrados e dos meus colegas. A Senhora Magistrada, olhando para mim com um ar de ódio que até lhe devia ter feito escorregar o rímel das pestanas, concluiu com ar solene que não admitia o meu comportamento e que ia participar da minha pessoa. Respondi imediatamente que também não admitia o tratamento feito à testemunha em questão e solicitava o favor de declarar se ia participar e para que entidade, pois antes disso eu iria ditar para a acta o meu veemente protesto pelo comportamento da Senhora Magistrada….! Mais nada me disse, e passados breves segundos de hesitação, resolveu começar o interrogatório à pobre testemunha que nada tinha percebido até aí do que estava a acontecer. No fim, obtive uma decisão favorável no processo, pois a prova foi feita como pretendia, mesmo com a documentada surdez da testemunha, centro do drama judiciário ocorrido por apenso.
O meu amigo magistrado, que fazia parte do Colectivo, veio pedir, por favor, que fosse dar uma satisfação à Srª Juíza que tinha ficado muito incomodada com a minha atitude. Consegui vencer os meus preconceitos e declarei ao meu amigo que não admitia que um magistrado tivesse tratado daquela maneira uma pobre testemunha. Enfim, o Presidente da Relação, meu bom amigo dos tempos de Coimbra, veio igualmente fazer-me uma espera e tentar que eu me retratasse, dando uma desculpa qualquer para o meu descabido comportamento. Claro que não cedi. Tanto um como o outro conheciam-me bem, e, no fundo, por aquilo que deles conheço, concordavam plenamente comigo. Pelos vistos, a palavra Tiozinho e a sua discutível interpretação, na linguagem processual, tem muito que se lhe diga e a sua filosófica intenção subjectiva deve ter sido objecto de um saboroso e frustrado Acórdão, nas conversas caseiras do Poder Judicial
António Moniz Palme – 2015
————————————————————————————————
Mais artigos
Redação Gazeta da Beira
Comentários recentes