A. Moniz de Palme (Ed. 649)

E como não podia deixar de ser, um toque refinado pseudo francês

E como não podia deixar de ser, um toque refinado pseudo francês

Ed648_cabeca-xaraPara finalizar, não posso deixar de referir um primor da carne de porco, que hoje pouca gente faz e sabe fazer. Estou a falar na Cabeça de Xara ou “Tête d´Achard”, como diziam os apreciadores mais sofisticados, referindo-se a uma receita francesa idêntica às existentes na Beira e Alentejo, talvez herdeiras de uma deixada por um cozinheiro da alta cozinha francesa, que por cá deambulou com as tropas napoleónicas, durante as invasões francesas.

Noutros tempos, era feita com uma cabeça de javardo, ou de javali na linguagem mais corrente.

Esta delícia era confeccionada normalmente fora do teatro de operações da Matança propriamente dita, em altura diferente, para não perturbar a vida normal das famílias com as suas particularidades de feitura.

Em muitos sítios, já não sabem o que é tal coisa. Porém, a minha memória permite-me falar à vontade nessa especialidade. Lá em casa, no dia 1 de Novembro, partíamos para a Feira dos Santos, em Mangualde, feira de venda de carne de porco. O divertido e único objectivo era só e apenas um: – Comprar uma cabeça de porco.

Após os Meus Pais confraternizarem, com meio mundo, pois nesse dia a Beira inteira confluía ali, iniciava-se a busca de uma cabeça de porco, com o tamanho e a dignidade suficientes, para fazer a Cabeça de Xara ou de Achard, aportuguesando o termo francês que na altura ouvia a todos os sofisticados ou menos sofisticados que a ela se referiam.

Ora bem, vou relatar o que via a minha saudosa Mãe fazer, pois muita boa gente não faz qualquer ideia de como é preparado esse acepipe fantástico.

Depois de devidamente lavada e raspada, a cabeça era aberta por baixo, e desossada com cautela para que a pele não fosse beliscada.

Era em seguida novamente lavada até não deitar mais sangue.

Depois, era posta de molho durante algum tempo em água temperada com sal, louro e rodelas de limão. Acabada esta operação, era posta a escorrer. Cortavam-se então as orelhas e esvaziava-se completamente o seu conteúdo, isto é toda a carne existente dentro da cabeça, incluindo o presunto e o toucinho existentes. Tudo era cortado às fatias finas, incluindo as orelhas. Concomitantemente, pousa-se a pele cuidadosamente num pano e recheia-se a mesma com as fatias antes cortadas e temperadas com louro, cravinho, raspas de nós moscada e pimenta moída, alhos picados e salsa picada quanto baste. Faz-se uma espécie de bola, que vai constituir o recheio. Coze-se a pele à roda dessa bola com uma linha forte e embrulha-se o conjunto num pano, atando-o com um cordel.

Entretanto, vai a lume um panelão ou uma panela de ferro de três pés. Deita-se lá para dentro vinho, bem como todos os legumes necessários, a saber, cebolas às rodelas, cenouras cortadas, sementes de coentros picantes, pimenta em grão, cravinho, louro em pó, alhos, alecrim, tomilho e mais rodelas de limão. Deita-se água na proporção de um pouco mais de metade da altura vasilha e junta-se um abundante caldo de carne. A minha Mãe adicionava cubos de caldo de carne na proporção de um por meio litro. Na altura, não se vendiam em todos os locais. Hoje em dia, existem em todas as mercearias, por mais manhosas que sejam.

Ferve esta mistura durante um quarto de hora e, finalmente, introduz-se na panela a bola anteriormente feita. Logo que levante outra vez a fervura, diminui-se o fogo para continuar tudo a cozer em lume brando durante meia dúzia de horas. Deixa-se esfriar aquele caldo.

Então, retira-se a bola de carne e coloca-se no meio de duas tábuas de madeira de bater os bifes, de modo a ficar bem comprimida. E para conseguir atingir melhor esse objectivo, põem-se o conjunto da bola e das duas tábuas que a comprimem, num sítio fresco da casa, com um peso grade em cima. Talvez uma balança de ferro, segundo me recordo.

Com o caldo da cozedura que ficou dentro da panela, faz-se a geleia, depois de misturado ao mesmo um copinho de vinho fino.

Desenforma-se a bola de carne que esteve espremida entre as duas tábuas. Entretanto o caldo e a gordura do porco, pós terem arrefecido, vão ser utilizados para confeccionar a geleia, o “aspic” como a minha Mãe lhe chamava à castelhana, que vai gelatinar a bola de carne, gelatina essa ainda reforçada com lâminas de gelatina que agora se vendem no mercado da especialidade e que antigamente a minha Mãe tinha que encomendar com antecedência.

O produto final é um acepipe do outro mundo. Hoje em dia, é muito raro aparecer cabeça de Axard à venda ou servida em restaurantes, como um prato normal.

Recordo um simpático médico do Porto que conseguiu arranjar uma Cabeça de Achard, para fazer uma surpresa ao Filhos, Netos e Amigos. Ficou desiludido quando verificou que quase ninguém sabia o que aquilo era. Entretanto, cheguei eu para aquela refeição festiva e logo me perguntou, à queima-roupa. “ O António sabe o que é uma “Tête d´Achard”? Claro que sabia, pois a minha Mãe fazia, quase todos os anos, a famosa “Tete de Achard”. Subi na sua consideração.

Enfim, apresentação feita dos Enchidos e serviço cumprido, vou-me à janta. Ala que se faz tarde.

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Redação Gazeta da Beira