Reflexões do falecido José Pereira sobre a vida e o mundo em manuscrito que me foi confiado:
As normas das relações entre os humanos tendem a evoluir de acordo com o desenvolvimento civilizacional
No muito longo tempo de economia recolectora anterior à produção de bens com base na agricultura e na pecuária, que ocorreu cerca de 12.000 anos antes de Cristo os humanos organizavam-se em pequenos colectivos para melhor colher os seus alimentos e se defender das agressões ambientais, de outros animais e dos colectivos humanos hostis.
As normas reguladoras das relações entre os humanos sofreram evolução ao longo da história da humanidade de acordo com o progresso económico e os demais (o social e o cultural) resultantes do desenvolvimento tecnológico. Não foram ditadas pelos deuses ou por deus único aos humanos directamente ou por intermédio de profetas ou outros mensageiros. Pelo contrário são construção cultural humana ao longo do tempo histórico, progredindo à medida do desenvolvimento das forças produtivas.
Os humanos integrantes de cada colectivo consideravam-se do mesmo sangue, praticavam a mesma economia, falavam a mesma língua, tinham crenças e práticas religiosas semelhantes, observavam idênticas e em regra rígidas práticas reprodutivas (não sendo em regra admitidos casamentos fora da tribo), praticavam igual diferenciação social e de trabalho entre os sexos e entre os adultos e as crianças e observavam os mesmos ritos de passagem à idade adulta.
A extensão em número e território desses colectivos foi variando, sendo reduzidos antes de a produção de bens passar à fase da agricultura e da pecuária, aumentando depois progressivamente em território, número de indivíduos e complexidade. Esses colectivos designam-se a seguir por tribos.
Cada tribo tendia a considerar que só os indivíduos que a integravam tinham plena dignidade humana, frequentemente autodesignando o seu colectivo por “os humanos”. Em consequência consideravam que o dever de respeito e de auxílio mútuo só existia entre os seus membros.
Do desenvolvimento da economia agrícola e pecuária, da decorrente sedentarização com desenvolvimento da tecnologia de produção de veículos com rodas e de barcos e o consequente comércio com outros colectivos humanos veio a resultar o progressivo fim da prática generalizada durante o muito longo período anterior de economia recolectora de extermínio dos colectivos tribais cujo território era tomado por outros. Essa prática de extermínio decorria de o espaço ambiental do território da tribo submetida não ter em regra suficiente capacidade de regeneração natural capaz de assegurar o aumento da população decorrente da ocupação do território pela tribo invasora.
Com o desenvolvimento da agricultura e da pecuária, da produção artesanal, das técnicas de construção em madeira, barro e pedra e de metalurgia (cobre, estanho, bronze e ferro), o domínio bélico de uma tribo por colectivo humano que vivesse da agricultura e da pecuária deixou de ter como consequência a eliminação física dos humanos integrantes da tribo conquistada, que passaram a trabalhar na condição de escravos para o colectivo conquistador, ou alguns dos seus membros, na agricultura, na pecuária, na produção artesanal e na construção.
A redução a escravatura decorrente do domínio bélico de um colectivo humano por outro foi significativo avanço civilizacional quanto à preservação da vida dos indivíduos dos colectivos submetidos por acção bélica, apesar da decorrente condição de servidão corresponder à redução de cada humano a estatuto de “coisa” de que o seu dono podia arbitrariamente dispor como se fosse animal de trabalho. Há que recordar o quase extermínio das tribos ameríndias (anteriores ao descobrimento da América) pelos europeus descobridores e invasores, que foi feito nos casos em que, opondo-se à ocupação das terras que habitavam, se recusavam a trabalhar nelas se feitos prisioneiros; o mesmo se repetiu na Austrália, na Nova Zelândia, com os bosquímanos do sul da África e em outros territórios conquistados.
Com o desenvolvimento económico e o decorrer do tempo o processo de integração dos colectivos tribais em colectivos políticos com numerosos humanos frequentemente de distintas línguas, religiões e costumes levou à constituição de impérios. Entre os mais significativos refere-se o persa, o grego macedónico, o romano, o chinês, o inca e o azteca.
Em consequência a cultura das múltiplas tribos que progressivamente foram sendo integradas em grandes colectivos políticos foi sendo progressivamente apagada; a todos os humanos livres neles integrados foi sendo pouco a pouco reconhecido estatuto de igualdade e muitos escravos foram progressivamente libertados da servidão; e as religiões tribais tenderam a ser substituídas por concepções religiosas monoteístas ou a caminho do monoteísmo, com progressivo reconhecimento da igualdade dos humanos que dessas concepções tende a decorrer.
Com os gregos do século 5 antes de Cristo ocorreu notável avanço emancipador da base cultural religiosa que foi até então o único fundamento da explicação do universo com o que o integra, a filosofia; traduziu-se na fundamentação do conhecimento humano na observação da natureza e dos factos experimentados com racionalização do observado.
Muito mais tarde, com o movimento renascentista dos séculos 15 e 16 e a decorrente cultura de racionalismo dos séculos posteriores, sobretudo com Erasmo de Roterdão (1466-1536), Tomás Morus (1478-1535) e muitos outros, adquiriu-se cultura de reconhecimento da igualdade de todos os humanos e de centralização neles dos valores culturais, o que desde então passou a generalizar-se e a ter aceitação cada vez menos contestada; e o caminho para o conhecimento passou a assentar na observação dos factos ocorridos e nos resultantes de experimentação e não em especulações teológicas assentes em escritos de atribuída origem divina.
Mas os novos interesses económicos das plantações coloniais, da mineração ultramarina e do grande comércio marítimo resistiram à plena aplicação do princípio de que todos os humanos são iguais. Por isso nos séculos 17 e 18 a escravatura intensificou-se nos territórios ultramarinos e conservou-se até ao fim das últimas décadas do século 19, frequentemente justificada com a afirmação pelos que dela beneficiavam de que os escravos eram infra-humanos. Ainda hoje (2014) ocorrem manifestações desumanizantes de pessoas de outra cor de pele ou de outros costumes, embora esporádicas, chamando-lhes macacos ou dando-lhes outras designações de carácter racista.
Embora tenha sido posto fim legal à escravatura, a opressão colonial com sujeição dos povos colonizados a trabalho compulsivo manteve-se até terem passado os meados do século 20. Nos Estados Unidos da América, apesar da guerra civil da década de 1860 que pôs fim à escravatura, os estados do sul mantiveram intoleráveis práticas sociais e legais de inferiorização dos não brancos até aos meados da década de 1960. Na África do Sul os povos negros foram privados da posse das suas terras, de viver no mesmo espaço dos brancos e de todos os direitos políticos até ao fim da década de 1980. O nazismo alemão alicerçou a sua ideologia belicista, para justificar a imposição do domínio que tentou impor aos outros povos pela Segunda Guerra Mundial, no que afirmava ser a superioridade racial alemã, fundamentando-a em viciosa interpretação da teoria darwinista da evolução das espécies. O regime nacionalista agressivo japonês, em aliança com a Alemanha nazi, tentou proceder de modo semelhante nos países do oriente, do sudeste asiático e das ilhas do Pacífico.
A derrota na Segunda Guerra Mundial dos regimes autoritários fascistas (principalmente o alemão e o japonês), com decisiva participação dos EUA e da União Soviética, levou ao reconhecimento pelo direito internacional da igualdade de todos os humanos sem discriminação religiosa, étnica e de género e do direito à autodeterminação e à independência dos povos colonizados, o que se formalizou com a aprovação da Carta das Nações Unidas seguida da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
A igualdade em direitos e deveres de todos os humanos não pode deixar de ser intransigentemente defendida, fundamentando-se em princípios religiosos, em especial monoteístas, e no entendimento de que todos os humanos constituímos uma só espécie animal.
Constituindo o homem uma só espécie animal, embora com variantes morfológicas, nenhum membro ou grupo de membros da espécie pode arrogar-se o direito de dispor de outros, que isso põe em causa a sobrevivência dela. Se um homem, ou grupo de homens, se atribui o direito de matar, ferir, dispor ou utilizar outro, este pode do mesmo modo arrogar-se o de fazer o mesmo àquele. A espécie não pode permitir esta desordem sob pena de pôr em causa a sua sobrevivência.
Não é necessário fazer assentar o princípio da igualdade em bases idealistas, embora os que o defendem nessa base mereçam aplauso. A observação leva a concluir que os homens são iguais porque pertencem à mesma espécie biológica e por o não respeito dentro da mesma espécie da regra da igualdade dos seus membros gerar forças autodestrutivas dela.
Não pode deixar de ser referida a resistência à aceitação do conceito de igualdade entre todos os humanos que se verifica, como sobrevivência histórica, em algumas significativas comunidades por se manterem anacronicamente imbuídas de sobreviventes valores culturais tribais. Entre essas comunidades as mais significativas na Europa são a judia e a cigana. Dessa sobrevivência cultural tende a resultar comportamentos individuais e colectivos potenciadores de manifestações de racismo. No mundo muitas outras comunidades humanas subsistem sobretudo nos numerosos estados nascidos da descolonização sequente ao fim da Segunda Guerra Mundial, que decidiram generalizadamente manter fronteiras coincidentes com as coloniais.
O apagamento desses anacrónicos valores tem que basear-se na escolarização generalizada, não forçada, dos filhos dos que defendem esses valores, mas consistentemente incentivada. Quanto aos judeus, que em grande parte preservam anacrónicos valores tribais de superioridade em relação aos não judeus, invocando inaceitável relação privilegiada com deus único por contrato de aliança com ele, a solução a nível mundial é mais complexa, sobretudo porque se instalaram com fundamento religioso, como estado, no território da Palestina, tendo, quando o fizeram, em 1948, expulsando quase todos os palestinianos das suas terras; e posteriormente, em 1967, invadiram a restante parte da terra da Palestina, de que desde então a apropriar-se e a colonizar sistematicamente contra o direito internacional. As Nações Unidas, os EUA e a EU com o apoio dos restantes países do mundo não podem deixar de tomar iniciativas que levem a pôr fim à tragédia de um povo, o palestiniano, ser metódica e quotidianamente sujeito a opressão e expulso da sua pátria em nome de pretenso direito de origem divina dos judeus a ela.
NOTA: A transcrição do escrito pelo falecido José Pereira foi autorizada pela família.Redação Gazeta da Beira
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