A. Bica – Reflexões sobre a vida e o mundo (3)

Reflexões sobre a vida e o mundo (3)

Reflexões do falecido José Pereira sobre a vida e o mundo em manuscrito que me foi confiado:

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A incapacidade humana para compreender completamente o universo

Há que questionar se os humanos alguma vez alcançarão o pleno conhecimento do universo, isto é de tudo o que existe. Não parece possível, que, sendo parte dele, isso estará fora do seu alcance. Compreender implica abarcar, o que, parece, os humanos nunca poderão conseguir com o infinito universo de que são parte ínfima. À parte parece estar vedado compreender, abarcando, o todo.

Poder-se-á considerar, com Espinosa e outros pensadores, que o universo  se pode  entender como suprema complexidade figurável como deus imanente, isto é deus não criador do universo, mas inteligência e consciência dele, pois, sendo o universo a máxima complexidade, englobando todos os seres, incluindo os humanos, corresponder-lhe-á inteligência muito superior à humana, isto é a máxima inteligência geradora de autoconsciência, que tudo compreende e comanda, concepção monista que se contrapõe à de deus transcendente, independentemente do universo, incriado, eterno, dele criador e nele presente, que é a das religiões monoteístas.

A ideia de deus imanente não parece aceitável, que implicaria ser a matéria constituinte do universo dotada de inteligência distinta da de cada ser e servir-se, como nos seres vivos, mormente nos humanos, de centro ou órgão específico gerador de capacidade de raciocinar em abstracto e de consciência e ainda de mecanismos capazes transmitir os seus comandos a cada parte da sua infinitude. Pelo que se pode inferir do até agora observado, tais mecanismos não existem; e se o universo for infinito, como será, não parece poderem existir.

A ideia de deus transcendente, isto é pré-existente ao universo, dele criador e distinto, responde à necessidade humana, que resulta da capacidade de raciocinar em abstracto, de explicar a si mesmo e a realidade exterior com todo o universo. Os humanos, sendo ínfima parte dele, são incapazes de o compreender, embora o vão entendendo cada vez melhor. Em vez de modestamente aceitar essa realidade, têm tentado explicar o universo pela figuração de deus único como dele criador, aceitando a sua incapacidade para explicar deus com argumento semelhante ao que consta da Bíblia, «A grandeza de deus está acima de todo o conhecimento» (Jó, 37. 26). Nessa linha de raciocínio situou-se o teólogo islâmico Jahm ibn Safwan, nascido no norte do actual Afeganistão, então Báctria, que considerava Deus incognoscível, sendo impossível atribuir-lhe quaisquer qualidades (ver Islão, de Hans Küng, Edições 70, 2010, pág. 339). Se, para explicar o universo, figurarmos deus aceitando estar fora da nossa capacidade de conhecimento, mais racional será aceitar que do universo, que transitoriamente integramos como indivíduos e espécie animal, não conhecemos e quase certamente nunca conheceremos senão ínfima parte sem deixar de se procurar conhecer cada vez mais.

Os defensores da ideia de deus (transcendente) usam também o argumento de necessidade de haver regras de conduta ditadas por deus para assegurar a harmonia social entre os humanos e de adoração a ele. Essas regras não são figuradas como ditadas a cada humano, mas através de certos mensageiros ou profetas e a eles transmitidas por inspiração pessoal, sonhos, ou anjos. Mas não é racional a ideia de deus concebido como criador de todos os homens (por isso necessariamente iguais) privilegiar alguns deles como transmissores da sua comunicação, mesmo que indirecta, destinada a todos, sem o fazer por meios racionais compreensíveis pela generalidade dos humanos, com imposição do dever de aceitar a mensagem por adesão emocional (fé), portanto não racional.

Entendendo-se o universo criado por deus omnipotente e omnisciente, é ele necessariamente regido pelas melhores leis. Mesmo aqueles que sentem necessidade de acreditar em deus como origem do universo não poderão deixar de entender que bastará para assegurar a harmonia entre os humanos e com toda a natureza procurar progredir no conhecimento das leis naturais e respeitá-las. Por outro lado, se deus criou o universo necessariamente com as melhores leis, isso exclui necessidade de intervir no devir de cada ser e do conjunto deles (devir histórico) e a possibilidade de milagres, entendidos como excepção às leis naturais por intervenção pontual de deus, nomeadamente a rogo de humanos. Sendo elas de criação divina, não podem deixar de ser as melhores, portanto insusceptíveis de correcção pontual pelo que se designa milagre. Outro entendimento corresponderá a figurar grosseiramente deus único como ente que age como o chefe de uma comunidade humana que nunca pode estar absolutamente seguro da correcção das leis que dele emanam, sendo por isso impressionável por rogos e argumentos com dever, como humano, de sempre estar aberto a corrigir as suas leis e decisões. A deus único, eterno, incriado, criador do universo portanto de tudo, omnisciente e sumamente justo logo não podendo errar, impassível consequentemente não demovível por argumentos e rogos não podem ser atribuídas excepções às suas leis, que designamos milagres, que isso corresponderia a correcção delas, necessariamente por entender ser passíveis de emenda ou correcção.

Quanto às normas de adoração a deus único não é concebível que, tendo as qualidades referidas, as tenha ditado com o fim de os humanos se lhe mostrarem permanentemente submissos declarando expressamente a submissão. Esse entendimento corresponde a compreensão de deus como soberano que desconhece o que sente cada humano no seu íntimo e por isso nunca está seguro da submissão de cada um deles, exigindo a cada um e ao colectivo que integram que permanentemente afirmem a sua submissão a ele.

A capacidade humana de raciocinar em abstracto, para tudo procurando explicação, é que será geradora da ideia de deus transcendente como meio de tentar explicar o universo inexplicável. Mas o avanço dos humanos no conhecimento dele, embora modestíssimo que é e seguramente sempre será, está a levá-los a aceitar racional e progressivamente a sua natural incapacidade de completamente o compreender sem deixar de sempre se esforçar por avançar no seu conhecimento e no espírito de respeito pela harmonia universal, que é o de procurar agir segundo as leis da natureza.

NOTA: A transcrição do escrito pelo falecido José Pereira foi autorizada pela família.Redação Gazeta da Beira